quarta-feira, 12 de março de 2008

ONDE COMEÇA A VIDA?

Com a aproximação da votação da Lei que pretende legalizar o assassinato de fetos, julguei oportuno republicar, com atualizações, este artigo anterior.

Tentando desfazer alguns mitos

Desde o início um dever se impõe, já que estaremos falando de algo que se situa na muitas vezes tênue fronteira entre ciência e religião, que freqüentemente divergem, outras vezes convergem. O autor tem o dever, pois, de explicitar de qual ponto de vista está falando.

É muito fácil cair na armadilha de dizer que “falo em nome da ciência” ou das “mais recentes descobertas científicas” como se a ciência existisse num vácuo, não fosse, e aqui não difere tanto da religião, produto dos mesmos seres humanos que pretende estudar ou da Natureza que os circunda. É muito comum as pessoas pensarem na ciência como um conhecimento apartado do mundo dos seres humanos, algo assim como um árbitro definitivo a respeito da realidade. Nada mais falso. A ciência é produto da mente humana e, portanto, é influenciada pela imaginação, fantasias e desejos dos pesquisadores. Há uma diferença sim, mas é outra: uma hipótese científica pode e espera-se que seja testada independentemente por outros cientistas. Não é, ou não deveria ser, dogmática.

Há evidentemente entre a explicação científica e a religiosa uma tensão natural e que jamais será resolvida, nem sendo desejável que desaparecesse, se isto fosse possível. A tentativa mais séria e danosa de negar esta tensão foi erigir uma “religião científica” como no positivismo e no marxismo. Neste último atingiu-se as raias do absurdo: tudo se fez para que a natureza coubesse nas explicações do “materialismo dialético”, até as mais estapafúrdias teorias de Engels expostas em seu “Dialética da Natureza” que os marxistas gostariam de esquecer, pois até eles se sentem envergonhados de tantas bobagens de um dos membros de sua “santíssima trindade”. Da mesma forma, a história, o simples relato de fatos, foi distorcida para se enquadrar no “materialismo histórico”. Apesar de alegarem que seu socialismo era “científico” tudo o que conseguiram foi fundar uma nova religião, a qual resiste menos do que as outras a uma atmosfera de liberdade, e só se mantém sob o jugo do totalitarismo.

Portanto, não tenho uma posição materialista porque os fenômenos humanos, mormente os mentais, transcendem meras operações materiais das ondas elétricas cerebrais, embora as “neurociências” – a mais moderna versão materialista sobre a mente - venham tentando esta redução a todo custo.

Se é verdade que as religiões foram arrogantes em dar explicações antes da observação, a ciência não o tem sido menos, por acreditar que se pode saber tudo através da observação e da dedução. Este é outro mito a respeito da ciência, de que as teorias são “produtos da observação”. A ciência depende de alguns indivíduos excepcionais, que podemos chamar gênios, que intuem algo de forma direta e inexplicável e daí partem para tentar provar o que perceberam. O exemplo claro é o de Einstein: ele não baseou sua teoria na observação do desvio da luz pela atração gravitacional; ele intuiu a característica corpuscular da luz sem nenhuma observação, e disse que, se ele estivesse certo, a luz seria desviada. Somente anos depois se deram as condições favoráveis para esta observação, durante um eclipse solar, e não deu outra: a luz desviou conforme Einstein predissera.

No assunto que vou tratar a seguir teremos uma explicação de como surge um novo ser, mas não pretende ser uma resposta para as perguntas “o que é a vida, por que morremos?”. Estes limites da ciência fazem com que alguns cientistas se satisfaçam com a explicação de que é apenas uma cadeia de aminoácidos organizados de maneira específica que um dia fenece.

Um ponto que tende a aproximar as teorias científicas das religiosas é que, hoje, não se considera que o processo vital sofra descontinuidade, isto é, que a vida recomece a cada novo ser. Acredita-se que a vida teve um impulso inicial – sopro vital, (divino?) - e passou a fluir constantemente de uns seres para outros. Pode-se dizer que a vida, após o impulso inicial, continua fluindo porque os gens se recusam a morrer e se perpetuam neste fluir. As células que conduzem os gens, o espermatozóide e o óvulo, são obviamente células vivas e portanto a vida se continua desde o momento da fecundação.

Embora não me considerando religioso, não me considero materialista pelas razões expostas acima e nem ateu, pois a meu ver estes combatem a idéia de Deus por não admitirem concorrência. Depois de séculos com as religiões perseguindo as ciências não deixa de ser curioso, até mesmo irônico, que haja uma reação tão violenta nos EUA cada vez que um Governo Republicano sugere que a explicação bíblica da Criação volte a ser ensinada junto com a darwinista. Medo de quê? Não deveria ser próprio dos cientistas este medo pois a verdade pré-existe a alguém que a descubra e a pense; a grande contribuição do ser humano é a mentira, esta sim, não existe sem um pensador.

Embriologia

Todos os seres vivos possuem duas molas propulsoras: a defesa da própria vida e a tendência à preservação da sua espécie. Não parece haver nada anterior a isto; simplesmente é assim. Ao mesmo tempo, o único destino previsível de um ser vivo é a morte, o que faz supor que exista além do impulso vital, um outro impulso que pode genericamente ser chamado de “tendência de retorno ao inorgânico”, como sugere a expressão latina revertere ad locum tuum. Trataremos aqui de como esta coisa começa.

Fecundação: penetração do espermatozóide no óvulo resultando no ovo que precisa de uma série de circunstâncias favoráveis para se dividir e crescer, entre elas a situação físico-química presente dentro da cavidade uterina, sendo a principal a condição do endométrio (parede interna do útero) para permitir a formação do “ninho”.

Nidação: no período fértil da mulher todo o aparelho genital sofre uma série de modificações no endométrio. Estas são resultado das alterações hormonais que preparam a mulher para a gravidez. A principal é o aumento dos progestágenos e a diminuição relativa dos estrogênios. Como o próprio nome o diz, pró–gestar, quer dizer “a favor da gestação”. Há um aumento da vascularização do endométrio deixando o terreno preparado para a imediata fixação de um óvulo eventualmente fecundado. Caso isto não ocorra voltam a se inverter as quantidades hormonais relativas, o endométrio descama e “solta-se” junto com o óvulo não fecundado no fluxo menstrual.

Caso o óvulo tenha sido fecundado ele tende a nidar, fazer seu ninho, a predominância de progesterona aumenta e a partir daí começa a se dividir e iniciar a fase embrionária. Note-se desde aqui algo que, ao menos do meu ponto de vista, já é uma primeira ação do novo ser, pois são as informações recebidas pelo aparelho glandular da mãe por parte deste óvulo fecundado que impedem a reversão hormonal que levaria inevitavelmente à expulsão menstrual, isto é, o novo ser já luta pela sua vida e pela preservação da espécie.

O primeiro “lago” placentário: no local onde ocorreu a nidação e começa a se reproduzir o ovo iniciam-se mudanças histológicas e anatômicas importantes. Vai-se formando um novo tecido e um novo órgão que não é nem embrião nem mãe, mas a interface entre ambos, a placenta. Sabiamente a natureza fez com que esta não seja parte da mãe, mas possa, no momento adequado, permanecer ligando a mãe com o feto que poderá então permanecer usando ainda o sangue proveniente da mãe e que lhe dá tempo de passar pelo canal do parto e sobreviver, até que possa respirar por si mesmo e adquirir o oxigênio vital através dos pulmões e não mais via glóbulos vermelhos maternos. Se a placenta pudesse “se soltar” antes de cortado o cordão umbilical, o feto morreria imediatamente após o “desgarre” do endométrio, por falta deste combustível vital.

O segundo “lago” placentário: acreditava-se que o aumento do aporte sanguíneo à placenta com a constante criação de novos vasos que possam suprir a demanda cada vez maior do embrião em crescimento, fosse um processo contínuo. Mas a patologia (estudo das doenças), como em outras vezes, veio em socorro da fisiologia (estudo do funcionamento normal) e percebeu-se que não era bem assim. O que vai a seguir é fundamental para minha tese, por isto peço paciência com alguns termos talvez não familiares mas que tentarei colocar nas palavras mais simples possíveis.

Há uma doença conhecida desde a Antigüidade que acomete mulheres grávidas e freqüentemente leva à morte. Ela se caracteriza por três sinais principais (em propedêutica chama-se sintoma o que o paciente relata espontaneamente e sinal aquilo que é encontrado pelo exame médico ou laboratorial): aumento contínuo da pressão arterial podendo atingir níveis mortais, edema (inchaços) e presença de proteínas na urina. Por esta última razão as comadres diziam “fulana, coitada, morreu de albumina”, porque esta é uma das séries de proteínas que aparecem na urina nesta doença. O nome médico era eclampsia ou toxemia gravídica. Usualmente as proteínas não saem pela urina, não são excretadas, pois são os principais compostos químicos do organismo. Exatamente por isto a principal demanda do embrião é exatamente protéica e, mais uma vez, a troca de mensagens feto-mãe faz com que a última “fabrique” mais proteínas, usando às vezes as suas próprias se o suprimento não estiver satisfatório. Na gravidez há, portanto, um aumento das proteínas circulantes que devem chegar ao feto e não ao rim. Se isto ocorre, há algo errado.

Com o refinamento dos métodos de investigação chegou-se às seguintes conclusões: 1 - o aumento do “lago” placentário não é de crescimento contínuo e linear; 2 - em algum momento, o embrião, que já produz alguns hormônios, deve “enviar” alguns deles para o organismo da mãe para ajudar na ampliação do “lago”, formando um verdadeiro segundo lago que permita o aumento de suprimento protéico e de oxigênio. É assim como se numa lagoa o aumento do número de peixes forçasse o aumento da extensão para não morrerem de inanição.

Se esta contribuição fetal não ocorre, o organismo da mãe, seguindo as leis da natureza, tenta de algum modo compensar mandando mais sangue, só que este, por falta de vasos mais calibrosos, fica “represado” (como se os afluentes da hipotética lagoa encontrassem resistência), o bombeamento cardíaco materno aumenta, aumentando continuamente a pressão arterial e da mesma forma que ocorreria com os afluentes, estes transbordam para os tecidos (edema), e pressionam sua saída pelos rins. E aí está a explicação da eclampsia, que hoje tem outro nome, Doença Hipertensiva Específica da Gravidez por causa exatamente da participação fetal que não ocorre em nenhuma outra circunstância.

Mesmo que alguns possam achar que estou sendo demasiado poético ou idealista, estas contribuições do embrião e mais tarde do feto – e muitas outras mais – já são expressão de impulsos básicos, herdados, uma espécie de “conhecimento a priori” ou pré concepções, que já o identificam como pessoa.

Considerações finais

Embora seja polêmico, considera-se que tal herança, transmitida pelos genótipos (contribuição genética, em oposição aos fenótipos, do ambiente) não se limita a características físicas mas inclui também uma espécie de “lembrança da história da evolução da espécie”, um registro de toda a filogênese que já deixa o novo ser apto a enfrentar o ambiente, primeiramente intra-uterino, posteriormente o externo. E é óbvio também que, sendo milhões de espermatozóides e só um – ou uma quantidade mínima em casos de gêmeos – cada um carrega consigo uma carga genética com um certo grau de individualidade. O ovo, portanto, não é apenas mais um novo ser, mas um novo ser específico, individualizado desde o início.

Alessandra Piontelli, pediatra e psicanalista infantil italiana, tem trabalhos pioneiros na área de observação pré, peri e pós-natal imediata com o uso de Ultra-som, Raios X e, posteriormente, da observação direta do bebê com a mãe. Publicou uma vastíssima obra na qual fica comprovado que a vida do feto não se limita a executar atos puramente reflexos, mas desenvolve até atividades tão complexas como chupar o dedo, reagir a estímulos químicos – como a modificação da dieta materna - ou mecânicos - como sons, batidas na barriga, etc. Mostraram-se reações emocionais intensas, como expressões de dor ou prazer. A continuidade da observação durante o parto e nos primeiros meses de vida, comprovaram que o feto já tem, potencialmente, uma “personalidade” própria e intransferível que vai desabrochando aos poucos no contato com o ambiente. Este, para ajudar, tem que ser um “ambiente de expectativas médias” que permitam aflorar as características físicas e mentais que o novo ser já traz dentro de si. Não atrapalhar é o melhor que os pais podem fazer.

Como disse Graça Salgueiro quando leu o texto original: o feto é um "hóspede" que acabado o período de "aluguel", parte, livre e relativamente independente do "hospedeiro". Relativamente porque ainda dependerá em muito do ambiente que o circunda, mas não mais daquele hospedeiro específico. Embora seja melhor que a relação com a própria mãe seja mantida, o bebê já não morre mais se este morrer, pois poderá ser socorrido por qualquer outra pessoa que o ame. O amor é uma expressão específica do ser humano, mas acredita-se que tenha por base o impulso instintivo de vida e preservação da espécie, embora o transcenda.

Termina aqui minha exposição, que teve a intenção somente de apontar razões científicas para a identificação do feto como um ser humano em formação, com características próprias, que não permitem conceituá-lo como “parte do corpo da mãe”, mas que apenas partilha com ela a interface placentária, enquanto isto for uma necessidade. Deste ponto de vista, portanto, é inevitável concluir que o aborto é uma espécie de homicídio, ou filicídio, de um ser já com individualidade que tem, in potentia, todas as condições de se desenvolver plenamente. Qualquer decisão, seja pessoal, seja jurídica, não pode evitar este conhecimento.

Será necessário, mesmo assim, abortar fetos que ameacem a vida da mãe gestante? Ou de fetos com reconhecidas anomalias físicas ou psíquicas que, se deixados nascer, tornarão suas vidas e a de seus pais um verdadeiro inferno? Não cabe ao cientista dar estas repostas, que pertencem ao campo da ética, da moral, da ciência jurídica e das convicções religiosas de cada um. Filósofos e cientistas não têm vocação administrativa, como pode-se deduzir da fracassada tentativa de Platão de levar à prática política sua idéia dos Reis Filósofos.

Mas seria desejável que toda a decisão fosse tomada com base na verdade e não em invenções falaciosas com a finalidade de eliminar os sentimentos de culpa de todos os envolvidos. Não dá certo, e disto tenho uma longa prática de atendimento psicológico: a culpa está sempre presente, por mais eficiente que seja a racionalização consciente.

O autor é escritor e comentarista político, membro da International Psychoanalytical Association e ex-Clinical Consultant, Boyer House Foundation, Berkeley, Califórnia, Membro do Board of Directors da Drug Watch International, e Diretor Cultural do Farol da Democracia Representativa (www.faroldademocracia.org) . Possui trabalhos nas áreas de psicanálise e comentários políticos publicados no Brasil e exterior. E é ex-militante da organização comunista clandestina, Ação Popular (AP).

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